Ludopatia Digital: Quando o Prazer se Torna Prisão
Ludopatia Digital: Quando o Prazer se Torna Prisão
Por Maria Fernanda Silva Ramos Sierve Psicóloga e cofundadora da Psi4players
Tudo começa com um clique. Um desafio. Uma aposta. Uma sensação boa. O tempo passa e o jogo vira rotina. Logo, deixa de ser diversão e se torna necessidade. E, quando você percebe? não consegue mais parar.
A contemporaneidade apresenta uma nova cultura, a digital. E com ela, o nosso tempo emerge delicada fronteira entre lazer e compulsão; prazer e prisão. Os jogos e apostas online se tornaram onipresentes e acessíveis a qualquer hora, em qualquer lugar e com promessas de recompensa imediata. A nova cultura entrega para o sistema psíquico o cenário perfeito: envolvente, veloz, sem pausas e sem faltas.
Não é difícil se perder nesse fluxo. O que fazer quando o prazer vira prisão?
A ludopatia, ou transtorno do jogo (Gambling Disorder), foi reconhecida oficialmente pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na 11ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-11). É classificada como um transtorno comportamental caracterizado pela perda de controle sobre o ato de jogar, priorização do jogo em relação a outras atividades da vida e continuação do comportamento apesar das consequências negativas.
Segundo a OMS (2022), o transtorno de jogo afeta entre 0,1% a 6% da população mundial, dependendo da região e do acesso às plataformas digitais.
Do ponto de vista da psiquiatria, o transtorno do jogo está incluído no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), ao lado dos transtornos relacionados a substâncias, reconhecendo que o jogo pode ativar sistemas de recompensa cerebral de maneira semelhante ao uso de drogas.
Entre os sintomas clínicos, destacam-se:
- necessidade crescente de apostar quantias maiores para obter excitação
- irritabilidade ou ansiedade ao tentar reduzir ou parar
- mentiras para esconder o envolvimento com o jogo
- comprometer relacionamentos, trabalho ou estudos por causa do jogo
Na psicanálise, a ludopatia é mais do que um transtorno: é uma resposta subjetiva. Freud já apontava que os sintomas, mesmo os mais autodestrutivos, são formas inconscientes de satisfação pulsional. Ele afirmou que "todo sintoma é uma satisfação de pulsão, ainda que disfarçada".
Lacan, por sua vez, entende o sujeito como dividido, estruturado pela linguagem, e o jogo pode ser interpretado como uma tentativa de lidar com a falta, o vazio ou a angústia ? um modo de encontrar sentido onde não há nome para o sofrimento.
O comportamento compulsivo surge como um ato repetitivo, muitas vezes para silenciar ou controlar algo que escapa à palavra. É por isso que a escuta clínica é tão essencial: ela possibilita que o sujeito fale, simbolize e, assim, encontre novos caminhos para além da compulsão.
Muitas vezes, o jogo aparece como um recurso de fuga psíquica diante de ansiedade, frustração, angústia ou solidão. Proibir ou restringir pode não funcionar. É preciso escutar.
Dessa forma, a escuta clínica feita com ética, técnica e respeito à singularidade pode abrir outras possibilidades para o sujeito, uma vez que a palavra pode decifrar aquilo que o que o sintoma repete.
Na abordagem psicanalítica, o sintoma não é apenas um problema a ser eliminado, mas uma formação do inconsciente que carrega um sentido para o sujeito. Ouvir o jogador em sua singularidade, dar espaço para que sua fala se desdobre, permite que o sintoma seja desvendado e transformado.
Freud já ressaltava que "o sintoma é uma solução encontrada pelo inconsciente para lidar com o conflito interno". Ou seja, o sintoma, mesmo doloroso, tem uma função que precisa ser compreendida para que possa ser atravessado.
Lacan complementa essa ideia afirmando que "o sintoma é um modo de ser do sujeito, uma mensagem cifrada que deve ser decifrada na clínica." É no ato da escuta que o sujeito pode nomear sua angústia, sua falta, e encontrar novos caminhos de gozo ? um jogo que não aprisiona, mas que permite jogar com a vida!
Assim, a escuta clínica não visa simplesmente o controle do comportamento compulsivo, mas a reconstrução do elo do sujeito consigo mesmo, abrindo espaço para escolhas conscientes e um modo mais equilibrado de lidar com o prazer e o sofrimento.
Sobre a autora:
Sobre a autora:
Maria Fernanda Silva Ramos Sierve é psicóloga, cofundadora da Psi4players, pesquisadora da ludopatia, cultura digital e saúde mental na contemporaneidade. Atua com escuta clínica de jogadores, atendimento a crianças, adolescentes e adultos e está em projetos ligados à tecnologia e saúde emocional.
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